“Você me dá a sua palavra” é obra central exposição intitulada “Word, Work, World” na qual a artista explora as conexões entre a linguagem cotidiana e a arte
O mês de setembro marca as comemorações dos três anos de profícua existência do V744atelier, espaço independente dedicado à criação e à exposição de arte contemporânea, fundado e administrado pela artista visual Vilma Sonaglio. Desde sua inauguração, em setembro de 2021, o local tem sido palco de importantes exposições, experimentações e eventos culturais em Porto Alegre.
Para marcar a data, outra comemoração soma-se à primeira: é que a artista convidada, Elida Tessler, está celebrando os 20 anos de uma de suas mais potentes obras – “Você me dá a sua palavra?”–, que ao lado de outras importantes produções no campo da arte compõem a fortuna crítica de uma artista/trajetória que soma com mais de três décadas de profundo e meticuloso mergulho artístico e intelectual. Este trabalho, iniciado em 2004, consiste em colecionar palavras manuscritas em prendedores de roupa de madeira, como um meio de explorar as conexões entre a linguagem cotidiana e a arte, elementos que são caros em seu processo artístico.
Ao longo de duas décadas, Tessler acumulou perto de oito mil prendedores, cada um representando um encontro e uma palavra oferecida por outra pessoa. Este é o trabalho que estará no centro da exposição “Word, Work, World”, que será inaugurada no dia 28 de setembro próximo, sábado, às 18h (detalhes no “Serviço”).
Professora aposentada do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Elida Tessler desenvolve pesquisa em torno das questões que envolvem arte e literatura, relacionando a palavra escrita à imagem visual. Sua trajetória está marcada pela criação, junto com Jailton Moreira, do Torreão, espaço seminal de produção e pesquisa em arte contemporânea, que definiu os rumos da arte brasileira em Porto Alegre e no Brasil, entre os anos de 1993 e 2009. Muito do que o público irá ver nesta nova exposição, ecoa a experiência vivida naquele espaço emblemático.
As relações entre palavra e imagem, de forma recorrente, estão no centro do trabalho de Elida Tessler, que se revelam na forma como ela lida e processa os eventos, as histórias e as experiências do cotidiano. – Desde há muito tempo, tenho uma observação do cotidiano bastante aguda. Qualquer elemento do acaso, objeto ou gesto banal serve como matéria prima para o meu trabalho. Desde que percebi que isso me trazia satisfação, procurei aprofundar estes eventos como método de criação, algo que desencadeia um processo que não obedece a um resultado pré-estabelecido. Para Tessler, colecionar palavras e objetos constitui o que ela denomina de “arqueologia do sensível”, em que pequenas narrativas e encontros são guardados para futuras interpretações. – Quando eu recebo uma palavra, geralmente vem uma história junto, vem uma narrativa. Eu estou te dando essa palavra porque estou muito tocada por essa palavra.
O pedagogo e professor Elisandro Rodrigues, que tem se dedicado a pesquisar a obra de Elida Tessler, no ensaio intitulado “Montagens Sensíveis: Nebulosas, Mesas, Palavras“, compara a abordagem da artista com o conceito de work in progress, que ela adapta para word in progress , em que o processo criativo está em constante evolução. Segundo ele, Tessler usa a palavra como matéria-prima de sua arte, explorando o acúmulo de palavras e objetos como parte de uma montagem que nunca está completa: a palavra como material em contínua transformação. Um exemplo central é o livro “Falas inacabadas” que Tessler concebe junto com o poeta Manoel Ricardo de Lima aproximando objetos e palavras que se conectam com a passagem do tempo e a memória.
No texto crítico “Contar as palavras como quem lê um poema infinito”, a escritora e doutora em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP), Isabela Bosi, comenta: “(…) Você me dá a sua palavra? remonta às memórias de todas as mãos que escreveram as suas palavras como uma confidência, sem saber que estavam escrevendo também um poema infinito, que hoje conta com mais de sete mil prendedores que, pendurados ao longo de um fino fio de aço, somam quase 200 metros de comprimento (…)“. E, mais adiante, ela acrescenta: “É esse um work in progress, ou um word in process, feito por palavras que, a cada releitura, ganham sempre novos sentidos, convocando ainda as palavras que permeiam toda a trajetória de Elida, todos os seus livros, os seus objetos e os de seus doadores. Caminhando ao longo do varal disposto no Atelier V744, cada um de nossos corpos fará uma coreografia única. As palavras que você lerá certamente não serão as mesmas da pessoa ao seu lado. A poesia que se forma diante de cada pessoa é única e irrepetível, por isso também sem fim”.
A EXPOSIÇÃO:
Logo na entrada, no corredor que está localizado após a porta principal que dá acesso ao V744atelier, estará a obra “Tempo Temporal” (1998-2024), que é uma apropriação tanto de uma série fotográfica de Vilma Sonaglio quanto de um breve texto de Jailton Moreira, ambos datados de 1998. As imagens fotográficas de Vilma documentam o trabalho Temporal, realizado em 1998 e apresentado em um pátio interno do Hospital Psiquiátrico São Pedro, na exposição 4 x 4, que reuniu os artistas Hélio Fervenza, Romanita Disconzi, Sandra Rey e a própria Elida.
A instalação original “Temporal” foi constituída por 74 palavras bordadas em pequenas toalhas de mão estendidas em um varal. Os vocábulos que integram o trabalho foram extraídos do livro “A dialética da duração” do filósofo francês Gaston Bachelard e evocam noções de temporalidade. Presas ao tecido, linearmente encadeadas mas livres do contexto original, as palavras, assim dispostas, estendem seus significados para outras associações. O trabalho, quando foi apresentado, estabeleceu um vínculo mais estreito entre a literatura e as artes visuais, procedimento concebido pela artista como método poético de criação de linguagem em trabalhos posteriores. Também, pela primeira vez, o prendedor de roupas apareceu como elemento da obra.
Produzidas sob encomenda, as fotografias de Vilma foram guardadas no ateliê da artista Elida Tessler, assim como o texto “Isto não é poesia”, do artista Jailton Moreira acerca de “Temporal”, endereçadas à Elida como uma carta pessoal. Ambos, em nenhum momento foram apresentados publicamente. Imagens e palavras que aguardaram 26 anos para serem vistas em contexto expositivo.
“Pela primeira vez, decidi aproximar produções de dois amigos que não foram concebidas originalmente como trabalho de arte. A proposição de “Tempo Temporal” consiste em deslocar da gaveta do arquivo para o corredor do espaço V744atelier uma memória guardada há tanto tempo. Palavras e imagens que, juntas, criam para mim um movimento que perpassa toda a exposição Word Work World”.
“Romance” (2024), que dá nome a um livro de tiragem única, será disposto bem ao final do corredor. As 7.672 palavras coletadas a partir de “Você me dá a sua palavra?” foram a matéria para a composição do livro “Romance” de Reginaldo Pujol Filho e Elida Tessler. Esta foi a quantidade de palavras reunidas até o momento em que a artista provocou o escritor a concretizar seu desejo de ler um livro ainda não escrito. Em resposta, Reginaldo tece, com as palavras dadas, uma trama textual que desafia as noções de autoria, inaugurando diferentes possibilidades de entendimento do conceito. Na mostra, o livro estará à disposição do público visitante para leitura e interferências gráficas.
“Você me dá a sua palavra?” (2004-2024) será apresentado na Sala Principal e na antessala. A instalação que consiste de prendedores e fio de aço é um trabalho iniciado em 2004, no contexto da realização de um projeto de Elida Tessler na cidade de Macapá (AP/Brasil). Apresentado em diferentes cidades e países, na presente data, o trabalho completa 20 anos, reunindo as palavras coletadas, cerca de 7.765, até o momento. O conjunto exibe uma diversidade de escrituras, caracteres alfabéticos, caligrafias, idiomas, expressões, sonoridades, locuções, grafismos, culturas, memórias, histórias, situações, pessoas, vidas. A montagem do trabalho consiste em dispor a totalidade dos prendedores em um único fio de varal
A proposição do trabalho surgiu a partir de uma conversa entre a artista e um motorista de táxi daquela cidade. Na ocasião, o condutor contou que o prefeito da capital de Macapá havia sido preso, por “faltar com a palavra”. Somente no dia seguinte, a partir da leitura dos jornais, Elida descobre que a detenção fora motivada por um desvio de verbas. Assim, a artista assume o ensejo de realizar um “desvio de verbos”.
O procedimento de Você me dá a sua palavra? consiste no pedido de Elida às pessoas para que escrevam uma palavra de sua escolha na superfície de um prendedor de roupas de madeira. A noção corrente do valor ético atribuído à palavra – dita ou escrita – é o primeiro estrato do trabalho. Em um segundo momento, a associação entre a prisão do político e a função de um prendedor de roupas promoveu a escolha deste objeto doméstico como suporte para a palavra. A A instalação já foi apresentado em Macapá/AP, Umbertide/Itália, Paris/França, Petrópolis/RJ, Melbourne/Austrália, México DC/México, São Paulo/SP, Campinas/SP, Itajaí/SC, Porto Alegre/RS.
“UMA PÁ LAVRA” (2004) ficará localizado no pátio do V744. Esta obra é formada por duas pás, em cujas alças foram escritas palavras com tinta acrílica branca. Reunidas, as pás formam um só vocábulo. Inicialmente, as pás foram cravadas junto ao Oceano Atlântico no Chuí, extremo sul do Brasil, para depois serem transportadas para a Linha do Equador, ocupando simultaneamente os dois hemisférios. Por fim, foram submersas no Rio Amazonas, em Macapá (AP), região norte do Brasil. Pela primeira vez, este trabalho é apresentado em um contexto de exposição.
Elida Tessler explica que é a primeira vez que utiliza o idioma inglês para nominar uma exposição e o justifica pelo fato de que tais palavras já vem sendo evocadas em textos anteriores seus: “Word” (palavra), “Work” (trabalho) e “World” (mundo) não se resumem a meros signos linguísticos, mas ganham significados que vão além de sua imagem sensorial, de sua representação gráfica.
Sobre a artista convidada:
Artista e pesquisadora. Doutorado em História da Arte na Université Paris I, Sorbonne. Foi professora do Instituto de Artes da UFRGS. Fundou e coordenou, junto com Jailton Moreira, o Torreão – espaço de produção e pesquisa em arte contemporânea em Porto Alegre/RS (1993 a 2009). Realizou Pós-Doutorado junto à EHESS- Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e junto ao Centro de Filosofia da Arte , Université de Paris I, Sorbonne.
Publicou com Manoel Ricardo de Lima, Falas Inacabadas, [Tomo Editorial, 2000]. Entre suas exposições individuais mais recentes estão Gramática intuitiva na Fundação Iberê Camargo (2013), 365 na Galeria Bolsa de Arte de Porto Alegre (2015) , Recortar Copiar Colar na Bolsa de Arte de São Paulo (2017) e Palavrar em três espaços de Porto Alegre: Centro Cultural da UFRGS, Biblioteca Pública do Estado e Galeria Bolsa de Arte (2022).
Sua produção voltada para as relações entre arte e literatura vem sendo apresentada em coletivas como Língua Solta , Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, (2021), Rétour à l’Afrique , Bandjoun Station, Bandjoun, Camarões (2019), Ecos Mecânicos: A máquina de escrever e a prática artística , Museu de Arte Contemporânea MAC-USP (2018) , James Joyce & Company , Moufflon Bookshop – House Hadjigeogakis- Nicósia, Chipre (2014), The Storytellers – Narratives in International Contemporary Art., Stenersen Museum, Oslo, Noruega. (2012), Participou da 2ª e 8ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre.
Sobre o V744atelier
Idealizado e administrado pela artista visual Vilma Sonaglio, o V744atelier foi inaugurado em 18 de setembro de 2021 com o objetivo de ser um local para criar e expor arte contemporânea. Em seu terceiro ano de atividades, o V744atelier vem consolidando seu propósito. A cada exposição, um novo desafio é proposto ao público, que é convidado a pensar e a refletir, seja apreciando as obras, seja participando das tradicionais ”Conversa com o Artista”, encontros que cada vez mais ganham apreciadores desejosos de conhecer a obra do (a) artista e seus processos criativos.
Acesse:
https://www.instagram.com/v744atelier
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Fonte: Redação